Ciência & cultura, ciência & arte, ciência & política, ciência & sociedade, ciência & não-ciência... enfim: ciência & crítica

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Física e filosofia segundo Heisenberg

A mecânica quântica trouxe para o centro da física paradoxos filosóficos até então restritos à metafísica: pôs em questão o princípio da causalidade, a natureza do observador, o conceito de existência e até mesmo a relação entre a consciência e os fenômenos físicos. Alguns, como o problema da consciência, já foram razoavelmente "domados", mas a maior parte permanece até hoje.

Assim, pode ser muito interessante conferir a visão sobre tudo isso de alguém que esteve no núcleo dos acontecimentos no principal período de construção da teoria quântica e um dos mais intensos de debate entre esses paradoxos, nas décadas de 1910 e 1920.

É isso que Werner Heisenberg faz no livro "Física e filosofia", publicado no Brasil pela editora da Universidade de Brasília. Ele expõe nesse volume o que pensa da física moderna sob vários pontos de vista - físico, filosófico, histórico e até linguístico. Heisenberg não é um qualquer mesmo entre o seleto time dos que fizeram a teoria quântica. Ele foi sozinho o autor da primeira versão completa da mesma, chamada "mecânica matricial", da qual ainda se usa muitos elementos, e também do famoso "princípio da indeterminação", que produziu tantos esclarecimentos quanto problemas sobre a relação entre o observador e o objeto observado e sobre a quebra do princípio da causalidade.

Entre os capítulos mais interessantes, estão sua narrativa da história da construção da mecânica quântica e sua visão da interpretação mais aceita da mesma, a "Interpretação de Copenhague" (também dedica um capítulo a seus críticos). Apesar de Heisenberg não ter participado ativamente dos famosos debates filosóficos entre Einstein e Niels Bohr sobre a natureza e a interpretação da teoria, ele teve papel central no seu desenvolvimento epistemológico. Heisenberg estava "do lado" de Bohr nesse debate. Einstein acreditava que a teoria estava incompleta, pois não concebia que a lei da causalidade pudesse ser quebrada ("Deus não joga dados", afirmou). No entanto, as evidências mais recentes apontam que Bohr e Heisenberg provavelmente estavam certos.

Outra parte muito atraente são dois capítulos nos quais ele coteja a física moderna - não só a quântica, mas também a teoria da relatividade - com diversos estágios da filosofia ocidental, desde os gregos pré-socráticos até a metafísica sobre o espaço e o tempo de Immanuel Kant (1724-1804). Heisenberg é de uma geração ainda não presa nas fronteiras rígidas de uma fragmentação estanque do conhecimento em suas diferentes áreas. No capítulo sobre a relação da quântica com outras áreas do saber, discute como os conceitos dessa teoria podem se articular ou se comparar com outras áreas da física, da química, biologia e até da psicologia e da arte.

Mais adiante, discute as consquências dos paradoxos que a física moderna levantou para as teorias da linguagem e da lógica. A razão da ligação é que vários paradoxos aparentemente insolúveis da quântica aparecem porque, quando descrevemos o mundo subatômico, usamos os mesmos conceitos que quando falamos do mundo macroscópico: posição, partícula, velocidade, trajetória etc. No entanto, essas entidades tão básicas comportam-se de forma radicalmente diferente no micromundo. Os resultados são chocantes, tais como uma partícula estar em vários lugares diferentes ao mesmo tempo; ou então simultaneamente existir e não existir. Devemos usar outra lógica, outra linguagem ou conviver com os paradoxos?

Há cientistas que tentaram desenvolver linguagens e lógicas alternativas para se poder falar da física subatômica, como Carl von Weiszäcker. Reflexões de lá para cá diminuíram a agudeza de parte dos problemas (ou talvez as pessoas tenham se acostumado com eles), mas aumentaram a de outros.

Finalizo com um depoimento pessoal. Este foi um dos dois ou três livros que mais influenciaram minha própria visão sobre a mecânica quântica. E o capítulo sobre os pré-socráticos foi uma iniciação filosófica que me atiçou a curiosidade sobre esse grupo de filósofos a ponto de nunca mais deixar de ler sobre eles. O mesmo aconteceu sobre Kant e outros.

Um comentário: