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domingo, 29 de março de 2020

Por que fazer a quarentena da população?

O motivo da quarentena é que o perigo do coronavírus não vem da sua letalidade, que não é tão alta (morrerão 0,39% dos infectados abaixo de 60 anos de idade e 1,33% dos acima de 60, segundo uma projeção recente). O perigo é que ele é extremamente contagioso e resiste dias inteiros preso em superfícies e em perdigotos no ar. Por isso, não são suficientes os tradicionais cuidados básicos (ainda que necessários!), que funcionam tão bem para tantas doenças mais comuns, como lavar as mãos. Sem intervenções mais drásticas, quase todo mundo seria infectado de uma forma ou de outra. E aí, com muitíssima gente doente, mesmo uma pequena letalidade causa uma quantidade enorme de mortes. Esse é o problema.

De fato, segundo uma recente simulação em computador a partir do que já se sabe sobre o vírus, quase toda humanidade seria infectada se não houvesse nenhuma intervenção: seriam 7 bilhões de doentes de um total de 7,7 bilhões de pessoas no planeta. Esse estudo é do grupo do infectologista britânico Neil Ferguson. Ora, com as taxas de letalidade acima, isso dá nada menos que 40 milhões de mortes. Para o Brasil, cerca de 1,15 milhão.

Para se ter uma ideia, 40 milhões é um pouco menos do que o total de mortes da Segunda Guerra Mundial, o conflito mais mortífero da História (que matou cerca de 60 milhões). Só que essa guerra durou seis anos, de 1939 a 1945. Ou seja, o covid-19 é capaz de matar numa velocidade várias vezes maior do que a média da pior guerra de todos os tempos.

Isso causaria também um efeito econômico devastador em todos os setores, especialmente entre os pequenos - pequenos comércios, pequenas empresas.

Mas isso, se nada for feito. E o que fazer? Atacar justamente aquilo que faz o vírus ser tão letal, que é eu contágio extremo. E como deter o contágio? Respeitando os cuidados básicos que as autoridades de saúde estão divulgando (muita atenção para esses cuidados!) e restringindo a proximidade entre as pessoas - pois é por aí que se dá o contágio.

Daí a estratégia do distanciamento social - a restrição de parte dos contatos entre as pessoas. Inclusive de crianças, pois, apesar de elas raramente desenvolverem os sintomas, transmitem o vírus para outras pessoas.


Mas funciona?

Segundo as últimas pesquisas, sim. De fato, no dia 16 de março cada pessoa infectada em Sâo Paulo contaminava em média outras 6, segundo um levantamento do Butantan; no dia 20, contaminava apenas 3; no dia 25, apenas 2. A quarentena então está funcionando.

Outro estudo, publicado na revista Science, encontrou correlações entre o confinamento feito na China e o sucesso no combate às infecções naquele país, mostrando que essa estratégia é eficiente.

O grupo do Ferguson fala em salvar vidas. Sua pesquisa (a mesma citada acima) estimou que uma redução de 45% dos contatos sociais pode diminuir o número de mortos no Brasil de 1,15 milhão para 620 mil, salvando assim 395 mil vidas. Uma restrição maciça, de 75% dos contatos, pode reduzir para 44 mil mortes, salvando mais de 1,1 milhão de vidas.

O problema do confinamento é que ele causará muitos problemas econômicos, especialmente para micro e pequenas empresas, para o pequeno comércio e para as pessoas mais vulneráveis. Mas a alternativa é sombria. Especialmente para esses setores. Assim, o que é necessário não é suspender o confinamento, mas sim programas do poder público para ajudar esses setores.

De qualquer forma, para avaliar que estratégia usar, nada melhor do que a experiência e o conhecimento dos cientistas, médicos e infectologistas. É com base nisso que está sendo proposto o confinamento. Sigamos as recomendações do ministério da Saúde.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Nanociência contra o câncer

Sim, eis que a nanociência também pode servir ao combate ao câncer. Especialmente no caso de um dos tratamentos alternativos para essa doença, a terapia por hipertermia, na qual as células cancerígenas são destruídas por superaquecimento, na casa dos 40 graus. Mata-se o câncer de "febre". Mas isso tem que ser muito bem localizado e controlado, para não matar células sadias junto. Por isso, cientistas têm tentado desenvolver métodos alternativos para a hipertermia baseados em nanociência.

A ideia é sintetizar nanopartículas que se acumulam justo nas células cancerígenas e se aquecem quando submetidas a um campo magnético oscilante, matando então apenas as células malsãs. Nanopartículas são partículas com diâmetros de até algumas dezenas de nanômetros (um nanômetro é um milionésimo de milímetro). Muito pequeno: dez átomos de hidrogênio enfileirados já dão um nanômetro.

As novas nanopartículas anticâncer têm potencial de serem mais seletivas (quer dizer, não matam as células sadias) e mais controláveis que os métodos tradicionais de tratamento por hipertermia. Bastaria que fosse injetado na pessoa um fármaco contendo tais nanopartículas e então aplicar um campo magnético variável próximo à região do câncer. Apenas as células cancerígenas se aqueceriam por causa do campo magnético oscilante e morreriam.

O pessoal vem tentando identificar de que materiais as nanopartículas devem ser feitas para provocar o efeito desejado sem prejudicar o organismo e como controlar seus efeitos. Várias contribuições de diversos grupos de pesquisa ao redor do globo, pequenos tijolos que vão formando o todo, vêm sido dadas nos últimos anos. O assunto é conhecido como hipertermia magnética.


O tijolo goiano

Olhemos de perto um desses tijolos, para ver que cara tem o tipo de pesquisa feita nessa área. No mês passado, foi publicado um artigo sobre isso por físicos da Universidade Federal de Goiás que saiu com destaque no boletim da Sociedade Brasileira de Física. Nanopartículas podem ser obtidas por reações químicas em laboratório, que provocam uma autoorganização espontânea dos átomos para formá-las. O grupo, de Andris Bakuzis, estudou nanopartículas de magnetita e de ferrita, que são dois materiais magnéticos (como ímãs). Quando deixadas suspensas dentro da água, sob condições propícias elas se juntam espontaneamente em pequenos filamentos (como na figura no início deste texto).

O que esses cientistas conseguiram fazer, com estudos em laboratório e simulações por computador, foi identificar os parâmetros necessários para que essas nanopartículas se aqueçam até a temperatura correta. Esses parâmetros são o tamanho das partículas, o comprimento médio dos filamentos que elas formam e várias condições dos experimentos em laboratório.

O tamanho das nanopartículas e dos filamentos, já se sabe razoavelmente como controlá-los no laboratório, então agora é só uma questão de descobrir quais devem ser exatamente esses tamanhos para a máxima eficiência no tratamento do câncer. Esse é então o próximo passo. Dizem os autores: "esperamos que este trabalho motive investigações exploratórias sobre novas estratégias para otimizar a hipetermia magnética, que pode ter um grande impacto no campo biomédico".


Teoria & experimento

Fizeram mais. Propuseram também um modelo teórico preliminar para explicar quantitativamente o seu funcionamento. Explicações teóricas são um instrumento importante na pesquisa porque dão muitas ideias sobre que caminhos seguir nos passos seguintes dos estudos. A teoria e os experimentos sempre andam lado a lado. Além disso, com os modelos pode-se calcular valores, quando ainda faltam dados experimentais. O modelo construído pelos goianos discorda de avaliações preliminares para o tamanho ideal das partículas.

Esse novo modelo teórico, porém, também não está completo. Os próprios cientistas afirmam no artigo que ele tem limitações e que são necessárias mais pesquisas para construir teorias mais sofisticadas. Então, aperfeiçoá-lo é outra tarefa para as próximas pesquisas.

Isto que descrevi aqui foi uma fotografia da ciência em pleno movimento. Novos passos virão, de várias direções, até que a hipertermia magnética esteja disponível como mais uma frente no combate ao câncer. Mas sempre lembrando que a prevenção é o melhor remédio. Sem ela, nem mesmo as tecnologias mais sofisticadas poderiam vencer.

O artigo comentado aqui é assinado por cinco pesquiadores da UFG, mais um da UnB, um da Universidade Federal do ABC e um da Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos.


Para saber mais:

Magnetismo, farmacologia e medicina (Carlos Alberto dos Santos, Ciência Hoje, 23/11/2007) - Sobre o uso de nanopartículas magnéticas na medicina, inclusive sobre o tratamento do câncer por hipertermia magnética.

Nanopartículas que salvam vidas (Carlos Alberto dos Santos, Ciência Hoje, 26/02/2010) - Sobre o uso de nanopartículas em geral na medicina.

O artigo original (de acesso aberto): Branquinho et al., Scientific Reports 3, 2887 (2013). doi:10.1038/srep02887.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Inácio Pereira do Amaral: Um artífice açoriano em Minas Gerais

Esta postagem é endereçada a historiadores da arte mineira do século XVIII.

Encontrei acidentalmente, em um documento no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (especifico a seguir), citações a um artista ou artífice de Minas Gerais (Ouro Preto e Conselheiro Lafaiete) do século XVIII, Inácio Pereira do Amaral. Como não achei quase nenhuma referência à atividade esse senhor em nenhum lugar (por exemplo, não consta do "Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XIX e XVIII em Minas Gerais", de Judith Martins, e no mecanismo de busca do site do Arquivo Público Mineiro só houve uma ocorrência, descrita mais abaixo), e como esses dados aparecem em uma fonte inesperada (um processo de ordenação sacerdotal de um neto do Inácio), creio que possa ser informação inédita. Então compartilho-a aqui para o caso de interessar a historiadores.

Sinopse da sua atividade de artífice: Sargento-mor Inácio Pereira do Amaral (N. 1698, Horta, ilha do Faial, Açores - F. Queluz, MG?) - Pintor, escultor e ourives. Teve uma "fábrica com pretos e rapazes pintores" em Ouro Preto, MG. Nessa cidade, pintou a Igreja Velha do Rosário dos Pretos e uma imagem de São Jorge. Em Conselheiro Lafaiete, MG, pintou a igreja da Matriz.

Abaixo, uma discussão sobre a fonte que consultei; um resumo biográfico; e trechos relevantes do documento consultado.

Índice:

Fonte: Processo de genere de João Bento Salgado (Queluz, 1797 - no índice do arquivo e na capa do documento, consta "1777"). Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, armário 5, pasta 769 (Inácio Pereira do Amaral era avô materno deste João Bento Salgado). As informações sobre as atividades de Inácio como artífice aparecem nos depoimentos de testemunhas que o conheceram. Vide seção "documentos" abaixo.


O que são processos de genere, vita et moribus:


Quando alguém se ordenava padre no século XVIII em Portugal e dependências, era preciso que passasse por três processos: um, para inventariar seu patrimônio, a fim de demonstrar que era suficiente para sua ordenação; dois, para assegurar a correteza de sua vida moral (moribus); três, para assegurar a "pureza" do seu sangue, ou seja, que era batizado e filho de pais casados e batizados e que não era descendente do que na época eram consideradas "raças infectas", nas palavras do formulário utilizado (negros, judeus, índios etc.). Esse terceiro processo, chamado processo de genere, era na verdade feito em estágios anteriores da ordenação. Ele possui informações riquíssimas para genealogistas, pois muitas vezes cita até os bisavós do habilitando (a maioria não era completa, pois a incúria para isso era grande na época).

Para extrair os dados necessários, eram enviadas requisições para os locais competentes para que estes enviassem cópias das certidões de batismo e de casamento do habilitando, de seus pais e de seus avós. Também, eram enviadas requisições para as paróquias onde o habilitando e seus pais e avós residiram, a fim de tomar depoimentos de testemunhas que o conheceram, arroladas pelos párocos locais. Esses depoimentos muitas vezes fornecem dados biográficos preciosos sobre os ancestrais do habilitando e às vezes sobre suas redes sociais. No documento que consultei, esses testemunhos informavam sobre algumas atividades de artífice do avô materno do habilitando, o açoriano Inácio Pereira do Amaral.

Os processos de moribus também possuem testemunhos, mas não tão ricos (em geral, apenas afirmam que o habilitando não é criminoso nem adúltero etc.). Os de patrimônio incluem cópias de diversos documentos, como de escrituras de terras; às vezes podem ser inferidas informações sobre o nível econômico do habilitando e de seus pais.

Os processos de genere feitos em Minas Gerais estão depositados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Os processos de genere, de moribus e de patrimônio estão encadernados juntos para cada titular. A grande maioria está em relativo bom estado (muito melhor estado que os livros paroquiais de qualquer arquivo brasileiro, por exemplo). Podem ser consultados no local sem agendamento. Não há índice informatizado, apenas de papel, alfabético, constando nome do titular, local e data. Cobre os séculos XVIII, XIX e parte do XX. Fica aberto para pesquisa de segunda a sexta das 13:30 às 15:00. Endereço: Rua Direita, 102, Mariana, MG. Fones: (31) 3557-1237 ou 3557-1351 (pode-se confirmar estes dados aqui). Outra fonte muito usada por genealogistas que esse arquivo contém são os processos matrimoniais ou de dispensa matrimonial de toda Minas Gerais, além de livros de batismo, casamento e óbitos da região ao redor de Mariana. Próximo ao arquivo fica o arquivo da Casa Setecentista, com documentos civis da região (testamentos, inventários etc.).

Mais informações
sobre processos de genere em: Villalta, Luiz Carlos. "A igreja, a sociedade e o clero". In: Resende, Maria Eugênia Lage de; e Villalta, Luiz Carlos (org.), História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas, vol. 2. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007, pág. 25-57, especialmente pág. 25-28.


Resumo biográfico de Inácio Pereira do Amaral

O sargento-mor Inácio Pereira do Amaral nasceu em 22 de janeiro de 1698 na freguesia das Angústias, na vila de Horta, na ilha do Faial, Arquipélago dos Açores. Era filho do sapateiro Antônio Pereira e de Serafina Rodrigues, ambos também naturais da vila de Horta. Seus pais moravam no lugar chamado Porto Pim e tiveram pelo menos mais um filho além de Inácio, Francisco Pereira do Amaral.

Dos Açores, Inácio foi ao Rio de Janeiro e depois a Ouro Preto, em Minas Gerais, onde morou desde o início da década de 1730, pelo menos, e, como pintor, pelo menos desde o início da de 1740. Ali, morava na frente da Igreja Velha do Rosário dos Pretos (não confundir com a atual Igreja do Rosário) e teve uma "fábrica" (uma oficina de pintura?) onde trabalhavam "pretos e rapazes pintores".

Sobre seu ofício de pintor em Ouro Preto, testemunhas que o conheceram se lembraram, na década de 1790, de ele ter pintado a dita igreja Velha do Rosário dos Pretos e também uma imagem de São Jorge. Uma pequena amostra de um dos serviços menores que deviam povoar sua atividade ao redor desses outros mais notáveis aparece no Arquivo Público Mineiro, nos fundos públicos da Câmara Municipal de Ouro Preto, onde consta uma solicitação de Inácio Pereira do Amaral, datada de 18 de abril de 1744, "do pagamento de 35 oitavas e meia de ouro, referente à pintura de 12 varas para os almotacés e de 5 para os vereadores". Já sobre sua vida particular, a única coisa transmitida pelos testemunhos é que costumava ir na procissão do Corpo de Deus.

Em Ouro Preto, casou-se com Margarida do Nascimento (originária da mesma freguesia das Angústias nos Açores) e ali tiveram duas filhas: Maria do Ó, casada com o mercador Domingos da Silva Neves, e Teresa Angélica de Jesus, nascida em 19 de setembro de 1734.

Quando Teresa ainda era criança, Inácio mudou-se para a freguesia do Campo dos Carijós (atual Conselheiro Lafaiete). Ali, as testemunhas que o conheceram se lembraram dele como pintor, escultor e ourives e também por ter pintado a igreja da Matriz do lugar (a imagem no início desta postagem mostra a fachada atual da igreja).

Teresa casou-se em 6 de novembro de 1757 com o cirurgião português João Pinto Salgado (estes tiveram o filho João Bento Salgado, titular do documento consultado). Maria do Ó ficou em Ouro Preto com seu marido. Sobre essa família, veja-se também o título "Bento Salgado" de "Genealogias da Zona do Carmo", do cônego Antônio Trindade.


DOCUMENTOS

1) Certidão de batismo

Processo de genere citado, folha 55 (ver também imagem do assento original no site do Inventário Genealógico do Centro de Conhecimento dos Açores)

Livro de batismos de Nossa Senhora das Angústias, vila de Horta, ilha do Faial, Açores, folha três, verso:

Inácio, filho de Antônio Pereira do Amaral [no original no site acima, está escrito "Antônio Pereira, sapateiro"], natural da vila de Horta do Faial, e de sua legítima mulher, Serafina Rodrigues, natural desta mesma vila, fregueses desta paroquial de Nossa Senhora das Angústias, do lugar do Porto Pim, nasceu aos vinte e dois do mês de janeiro do ano de mil seiscentos e noventa e oito e foi batizado por mim, o padre André Godinho Ribeiro, cura desta dita paroquial de Nossa Senhora das Angústias, aos vinte e oito dias do mês de janeiro do mesmo ano de mil seiscentos e noventa e oito. Foram padrinhos Inácio Fichar, filho de Ambrósio Fichar, e sua mãe, Maria de Almeida, mulher do mesmo Ambrósio Fichar, fregueses da Matriz do Salvador, desta vila, e nela moradores. E, em fé de verdade, fiz este termo, que assinei com testemunhas presentes: Bernardo Pereira, mercador, e Manuel Furtado, fregueses desta paroquial. E[u], nos mesmos vinte e oito dias do mês de janeiro de mil seiscentos e noventa e oito, o cura Tomé Godinho Ribeiro.


2) Excertos dos depoimentos das testemunhas:

[folha 72v]

2.1) Depoimentos tomados em 9 de julho de 1796 na vila de Queluz, em casas de morada do reverendo vigário Fortunato Gomes Carneiro:

João de Medeiros Teixeira
Casado
Natural da freguesia de São Paio de Perelhal, termo ou Comarca de Bom Mor[?], Arcebispado de Braga.
Vive de sua agencia
76 anos
Morador nesta Freguesia
"[Conheceu] ao avô materno [Inácio Pereira do Amaral] com suas curiosidades de ourives [...] A razão que tem para disto saber é ser morador nesta freguesia há mais de 40 anos e de nela os conhecer [os pais e avós]"

Alferes José Pereira do Santos
Pardo
Solteiro
56 anos
Natural da freguesia de Ouro Branco
Morador nesta vila
Vive do seu negócio de fazenda seca
"[...] o avô, ouviu dizer que tinha muita habilidade e que pintara a Matriz desta Vila [...] A razão que tem para disto saber é que desde menino é morador nesta vila e nela os tem conhecido [...]"

Luis Ribeiro de Carvalhaes

Branco
Solteiro
Vive de seu ofício de ferreiro
73 anos incompletos
Natural da freguesia de São Pedro da Lomba, Bispado do Porto
"[...] Conheceu, moradores nesta vila, os avós maternos [...] e lhe parece a ele, testemunha, que ambos eram naturais das Ilhas [...]"
razão por saber: é morador antigo nesta vila

José Ferreira de Brito
Branco
Solteiro
Procurador da Câmara nesta Vila
Vive de sua agência
67 anos
"[...] Conheceu somente a avó materna, dona Margarida do Nascimento, morando nesta Vila, onde faleceu [...] E a razão que tem para saber é ser morador antigo nesta Vila e conhecer os pais do habilitando ainda solteiros; e disse mais, que ele, testemunha, é natural e batizado na Freguesia de São João da Cruz, Arcebispado de Braga, Termo do Porto[...]"

Diogo Duarte
Pardo casado
Natural e batizado na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Arraial das Congonhas do Campo, Bispado de Mariana
Vive de comprar e vender
56 anos
"[...] conhece o habilitando e os seus pais [...]"
[razão para saber:morador antigo na freguesia]

Luís de Almeida
Branco
Casado
Natural da freguesia de Santo Adrião de Vila de Óis da Ribeira, Bispado de Coimbra
Vive de seu negócio
74 anos
Conhece o habilitando e seus pais "e seu avô materno, o sargento-mor Ignácio Pereira do Amaaral; mal se entrelembra o conhecê-lo, porém conheceu muito bem a sua mulher, dona Margarida do Nascimento, e [sabe] que eram naturais das Ilhas [...] e o avô declarado com habilidade de escultor, pintor e ourives [...]"[razão de o saber: ser morador antigo nesta vila]

Jose Ribeiro de Carvalhaes
Branco
Casado
Natural e batizado na freguesia de São Pedro da Lomba, Bispado do Porto
71 anos
Vive de sua agência
"[...] E conhecera também os avós maternos [...] naturais das Ilhas, que tinha sido pintor segundo ouvira [...]"
razão para saber: ser morador antigo nesta Vila e vizinho da terra de seu pai [do habilitando]


[folha 46v]

2.2) Depoimentos de 15 de outubro de 1793 na vila de Horta, em casas de morada do ouvidor eclesiástico Francisco Inácio Xavier Whiton:

Antônia Margarida Teresa, viúva de Matias Corrêa, natural e morador na freguesia de Nossa Senhora das Angústias, de idade que disse ser de sessenta e sete anos, pouco mais ou menos [...] Disse que não conheceu os avós paternos do habilitando, o sargento-mor Inácio Pereira e sua mulher, mas que o pai dela, testemunha, chamado Francisco Pereira do Amaral, se correspondia com ele em razão de serem irmãos; e que ouviu dizer ao mesmo seu pai que o dito sargento-mor, seu irmão, casara nas Minas com uma mulher natural da dita freguesia das Angústias, mas que não tem notícia dos seus ascendentes [...]

Antônio da Rosa, marítimo, natural e morador na freguesia das Angústias, de idade que disse ter de sessenta e nove anos [...] Disse que conheceu ao sargento-mor Inácio Pereira do Amaral, natural da freguesia de Nossa Senhora das Angústias, em cuja freguesia o conheceu sendo solteiro, assistindo na casa de seus pais; mas que não tem lembrança do que vivia o mesmo avô do habilitando, o qual se embarcou para o Rio de Janeiro; mas que não conheceu à sua mulher mencionada neste artigo.

Teresa Josefa, mulher de Pedro José, [palavra ilegível], morador na freguesia de Nossa Senhora das Angústias, desta ilha, de idade que disse ser de sessenta anos, pouco mais ou menos [...] Disse que não conheceu as pessoas mencioandas no artigo, mas que conhece algumas famílias com os cognomes de Pereira e Amaral, sem nota alguma que os inabilite passe o estado de sacerdotes [...]

Antônio Ferreira de Matos, natural e morador na freguesia de Nossa Senhora das Angústias, de idade que disse ser de sessenta e três anos, pouco mais ou menos [...] Disse que não conheceu as pessoas mencionadas neste artigo, mas que tem ouvido dizer que o dito sargento-mor Inácio Pereira do Amaral era irmão de Francisco Pereira do Amaral, morador que foi neste freguesia, a quem ele, testemunha, conheceu; e era sujeito de boa nota, sem coisa alguma em contrário [...]

[Continuação dos depoimentos no dia 16]

Manuel José da Silveira, marítimo, morador na freguesia de Nossa Senhora das Angústias, de idade que disse ser de setenta e três anos, pouco mais ou menos [...] Disse que não conheceu as pessoas mencionadas no artigo, mas que conhece algumas famílias com os cognomes Amaral, sem nota alguma no seu procedimento [...]

O reverendo padre José Antônio, clérigo subdiácono, natural e morador na freguesia de Nossa Senhora das Angústias, de idade que disse ter de sessenta e cinco anos, pouco mais ou menos [...] Disse que alguma lembrança tem de conhecer Inácio Pereira do Amaral, o qual era irmão de Francisco Pereira do Amaral, naturais da paroquial de Nossa Senhora das Angústias; e que o mesmo Inácio Pereira se transportou para o Rio de Janeiro no estado de solteiro e por isso não sabe com quem casou nem se lembra da ocupação que tinha [...]

Antônio Dutra, marítimo, morador na freguesia de Nossa Senhora das Angústias, de idade que disse ser de sessenta anos, pouco mais ou menos [...] Disse que não conheceu ao nomeado Inácio Pereira do Amaral nem à sua mulher, mas que conheceu algumas famílias com os cognomes de Amaral, sem nota alguma na sua geração [...]

Pedro José Lopes, marítimo, morador na freguesia de Nossa Senhora das Angústias, de idade que disse ser de sessenta e sete anos, pouco mais ou menos [...] Disse que não conheceu o sargento-mor Inácio Pereira do Amaral nem sua mulher, mencionada neste artigo, mas que conheceu algumas famílias nesta vila com os cognomes de Amaral, sem nota, assim no seu procedimento como na sua geração [...]


[folha 64]

2.3) Depoimentos de 14 de julho de 1796 em Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, em casas de morada do reverendo Dr. José Álvares de Sousa, vigário da vara desta vila e seu termo:

Custódio Álvares de Aráujo
Natural do Arcebispado de Braga
De presente morador nesta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto
Vive de seu ofício de carpinteiro
85 anos
"[...] Disse que haverá 56 anos que é morador nesta Vila Rica [...] Conheceu muito bem a Inácio Pereira do Amaral, casado com Dona Margarida do Nascimento, naturais das Ilhas e moradores defronte da Igreja Velha do Rosário; e haverá trinta para quarenta que se mudara aquela familia desta vila; e lhe consta que, tendo uma filha, saíra [com ela] pequena desta vila e que a casara no arraial dos Carijós com um cirurgião perlesa[?]; ignora o nome não só de sua sra. como do escolhido[?], por serem moradores fora desta vila [...]"

Jerônimo de Sousa Lobo
Natural do Bispado do Rio de Janeiro
De presente morador nesta Vila Rica na Freguesia do Pilar
Que vive do jornal e trabalho de seus escravos
70 anos
"[...] Conheceu muito bem nesta Vila Rica, haverá 60 anos, sendo ainda rapaz, ao Sargento-mor Inácio Pereira, [...] morador às portas do Rosário Velho dos Pretos da Freguesia do Pilar de Vila Rica, que vivia da sua arte ou ofício de pintor; e se lembra pintar a Igreja Velha do Rosário e que tem tindo[?] uma viva lembrança de pintar a São Jorge; que costuma ir à Procissão do Corpo de Deus, nesta vila; e lhe consta que tivera duas filhas, uma que a casara no Arraial de Carijós (nesse tempo; e hoje Vila de Queluz), que presume ser mãe do habilitando, e outra, nesta Vila, fora casada com Domingos da Silva Neves."

O capitão João Martins Maia
Natural deste Bispado de Mariana
De presente morador na Freguesia do Pilar desta Vila Rica
Vive de seu ofício de ceregueiro[?]
75 anos
"[...] Conheceu nesta Vila Rica, houvera 60 anos ou mais, o sargento-mor Inácio Pereira do Amaral, casado com uma mulher branca cujo nome ignora, morador que foi às portas do Rosário dos Pretos do Copunde[?] da Freguesia do Pilar desta Vila Rica; que vivia de ser pintor com a sua fábrica de pretos e rapazes pintores; e sabe mais, que tivera duas filhas e que conhecera muito bem a uma delas, chamada Maria do Ó, que fora depois casada com Domingos da Silva Neves, mercador, moradores que foram na paragem chamada Ouro Preto; e da outra irmã não sabe ele, testemunha, depois que se mudaram desta vila para o arraial de Carijós [...]"

Antônio Marques
Natural do Bispado de Angra [Açores]
Morador nesta Vila Rica na Freguesia do Pilar
Vive do jornal de seus escravos
78 anos
"[...] [conheceu] nesta vila, desde a era de 1751 anos, ao sargento-mor Inácio Pereira do Amaral, morador que foi na rua do Rosário dos Pretos da Freguesia do Pilar desta Vila, natural das Ilhas, casado, e que tinha familia; e vivia dos ofício de pintor; e que casara uma sua filha, cujo nome ignora, com Domingos da Silva Neves, que tinha a sua loja frenteira às casas do falecido Brás Gomes de Oliveira; e que o dito Amaral se mudara com a sua família para o arraial de Carijós [...]"

O Tenente Agostinho Soares
Natural do Arcebispado de Braga
Morador na Freguesia do Pilar desta Vila Rica
Vive de sua lavoura e lavras de minerar
81 anos
"[...] Conheceu o sargento-mor Inácio Pereira do Amaral, morador que foi no Rosario dos Pretos da Freguesia do Pilar desta Vila, casado, com família numerosa [...] vivia do seu ofício de pintor haverá 55 anos e que depois lhe constou mudar para o Arraial de Carijós com a sua família [...]"

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Bóson de Higgs: ajuda a jornalistas

É, parece que o tema do momento é o bóson de Higgs. No dia 04/07/2012, cientistas encontraram, no LHC, uma nova partícula que acreditam ser o bóson de Higgs, pois parece se comportar de maneira consistente com o que é esperado dele pela teoria. O problema é que boa parte dos textos "explicativos" encontrados por aí têm muitas partes pouco compreensíveis. Alguns amigos jornalistas me pediram ajuda; aqui vão algumas informações. Elas não substituem os textos de referência; são apenas guias para se orientar melhor por eles. 

O que é o bóson de Higgs? Também chamado bosão de Higgs, é uma partícula subatômica, tal como o próton, o nêutron ou o elétron. Mas, diferentemente do próton e do nêutron, que são formados por partículas ainda menores (são formados por três diferentes tipos de quarks cada um), o bóson de Higgs é uma partícula "elementar", ou seja, não tem constituintes mais básicos (outra partícula elementar é o elétron) - P.S.17/08/12: há no entanto teorias alternativas nas quais o Higgs é composto. Ela ainda não havia sido observada, mas sua existência é uma consequência natural do edifício teórico atual da física das partículas, chamado Modelo Padrão. Uma maneira curta de dizer isso é falar que o Modelo Padrão "prevê" sua existência.

Se o bóson de Higgs é uma partícula subatômica, ele faz parte dos átomos? Não. Ele não existem "por aí", como elétrons e prótons. Na veradade, a maior parte das partículas elementares conhecidas não existe "por aí" nem faz parte dos átomos. Elas só aparecem quando são produzidas em reações envolvendo outras partículas, quando estas colidem entre si em energias muito altas. Elas "vivem" muito pouco, só durante o processo de colisão - em uma pequena fração de segundo, "decaem" em outras partículas. Então, tais partículas só se manifestam nesses casos. Assim é também o bóson de Higgs. Para produzi-las, os físicos usam os aceleradores de partículas, que realizam tais colisões muito energéticas (entre prótons e prótons, por exemplo).

Por que achar o bóson de Higgs é importante? Para verificar se o Modelo Padrão, a teoria atual da física das partículas, está correto.

O que acontece se for provado que o bóson de Higgs não existe? Resposta curta: Se o bóson de Higgs não existir, o Modelo Padrão não estará correto e teríamos que encontrar uma nova teoria modificá-lo bastante. Até aí, nenhuma diferença com qualquer outra previsão da teoria que venha a ser testada. Só que, no caso do bóson de Higgs, o buraco é mais embaixo. Pois a existência do bóson de Higgs está relacionada com princípios muito fundamentais que jazem na própria base da teoria. Se provarem que ele não existe, as consequências seriam catastróficas: a teoria preveria que a massa de todas as partículas - portanto, de toda a matéria conhecida - seria zero! Nesse caso, teriam que achar novos princípios e reconstruir tudo.

Resposta longa: Como eu disse acima, o buraco é mais embaixo do que simplesmente verificar a previsão de uma teoria. O Modelo Padrão se parece mais com um conjunto de teorias com alguns princípios fundamentais comuns que as amarram, formando um todo harmônico e unificado, um edifício teórico portentoso. Se algumas das partículas previstas por ele não tivesse sido confirmada, bem, teriam que mudar coisas grandes no edifício, teriam que talvez trocar uma das teorias amarradas nele. Porém, o caso do bóson de Higgs é particularmente fatal. Ele é uma consequência está relacionado não a uma dessas teorias amarradas no Modelo Padrão, mas sim a um dos princípios fundamentais que subjazem na própria base de todo o edifício. O nome desse princípio é "simetria local de calibre". Trata-se de um conceito um pouco abstrato e para explicá-lo eu teria que gastar um pouco mais de parágrafos; mas o importante aqui é que, se o bóson de Higgs não existir, esse princípio fundamental teria como consequência automática que todas as partículas existentes tenham massa zero (e portanto toda a matéria conhecida teria massa zero). O que é evidentemente um absurdo. Para "salvar" a teoria, foi proposto em 1964 um mecanismo teórico ("mecanismo de Higgs") com o qual as partículas adquiririam massa dentro da teoria. A existência do bóson de Higgs é uma consequência natural desse mecanismo. Assim, se for confirmado que o bóson de Higgs não existe - e se não conseguirem construir nenhum outro "mecanismo teórico" que substitua o de Higgs (P.S. de 14/07/12) -, não poderíamos usar a simetria local de calibre e a teoria terá problemas estará inteiramente errada, no nível de seus princípios mais básicos. Possivelmente teriam que encontrar outros princípios fundamentais para reconstruir uma nova teoria. Partir quase do chão novamente. Daí o auê em torno do bichinho.

O que acontece se a partícula encontrada no dia 04/07/12 não for o bóson de Higgs? Então terão que procurá-lo com outras massas. De qualquer forma, é extraordinário que tenham encontrado uma partícula nova ainda não prevista por nenhum modelo teórico. Sua existência teria que ser explicada, o que poderia levar a desenvolvimentos teóricos bastante excitantes.  

O Brasil está envolvido nessas pesquisas? Sim. Há 7 instituições brasileiras envolvidas nos experimentos que produziram os resultados do dia 04/07 sobre a nova partícula: UFRJ, USP, UFJF, UFSJ, UERJ, CBPF e UNESP. Vide a lista dos países e instituições em:
http://cms.web.cern.ch/content/cms-collaboration (CMS)
e
http://atlas.web.cern.ch/Atlas/Management/Institutions.html (ATLAS)

CMS e ATLAS são dois grupos de pesquisa distintos que buscam o Higgs no LHC. Há vários grupos de pesquisa lá. Uma lista desses grupos está aqui:
http://lhc.web.cern.ch/lhc/LHC_Experiments.htm

Como os brasileiros participaram da busca pelo bóson de Higgs? O anúncio do dia 04/07 é resultado da análise de milhões de dados colhidos pelo LHC ao longo de meses de funcionamento (vide item "Por que o LHC demorou tanto para encontrar o Higgs", abaixo). Esses dados foram analisados por computadores de dezenas de instituições em vários países, entre os quais o Brasil. É possível, porém, que haja também profissionais e estudantes brasileiros participando diretamente no próprio LHC das pesquisas.

Por que o LHC demorou tanto para encontrar o Higgs? O anúncio da nova partícula no dia 04/07 não é resultado de um experimento simples realizado nos dias anteriores. Em um acelerador de partículas, partículas subatômicas colidem violentamente entre si, em velocidades muito próximas à da luz, para produzir partículas novas - entre as quais o bóson de Higgs, se as condições forem adequadas. Acontece que tais experimentos produzem resultados apenas estatísticos, e é preciso deixar o aparelho funcionando por bastante tempo, com muitas colisões ocorrendo, até que os dados estatísticos se acumulem o suficiente e adquiram um grau de certeza que satisfaça os padrões atuais da ciência. Para chegar aos resultados atuais, foi necessário deixar o LHC funcionando por meses a fio, produzindo milhões de dados. Esses dados devem ser analisados por computadores. Não só os do próprio LHC. Há dezenas de instituições espalhadas pelo mundo para analisá-los.

Por que os físicos dizem que o bóson de Higgs explica as massas das partículas subatômicas? A teoria, se fosse desprovida do bóson de Higgs, preveria que as partículas subatômicas não teriam massa, o que é absurdo. Para resolver isso foi proposto o "mecanismo de Higgs", um artifício teórico que tem como consequência natural a existência dos bósons de Higgs. As massas surgem na teoria da seguinte forma: associado ao bóson de Higgs, existe um campo, o "campo de Higgs", análogo aos campos de força conhecidos (elétrico, magnético, gravitacional etc.), e que permeia todo o espaço. Interpretar fisicamente a matemática envolvida é um pouco complicado, mas, segundo a interpretação corrente, as partículas (que não teriam massa sem o bóson), adquirem-na interagindo com o campo de Higgs, como se este fosse um meio viscoso que atrasasse o movimento das partículas, emulando uma "inércia" para elas. Mas, espere, o que explica a massa é o campo de Higgs ou o bóson de Higgs? O campo de Higgs e o bóson de Higgs estão intextricavelmente ligados - na verdade, são dois lados, duas manifestações distintas da mesma realidade física (na teoria quântica, campos de força estão sempre associados a partículas desta forma - os campos elétrico e magnético, por exemplo, estão associados a fótons). Por isso, é possível falar que o próprio bóson "explica" as massas, ao invés de o campo de Higgs.

Obs.: em uma versão anterior, eu tinha dito que achava a frase "o bóson de Higgs explica as massas das partículas" um tanto sensacionalista por não concordar com essa interpretação. Voltei atrás após alguns esclarecimentos.

Se for confirmado que a partícula que encontraram no dia 04/07/12 é mesmo o bóson de Higgs, então, terão "fechado" o Modelo Padrão? Não. Na verdade, a teoria sobre o bóson de Higgs não está completa; falta parte da expressão matemática que o descreve e na verdade não se sabe sequer se existe um ou mais bósons de Higgs. Serão necessários mais experimentos para verificar se há mais deles por aí.

O LHC não é a única instituição procurando o Higgs. Tem também o Fermilab, nos EUA (seu acelerador chama-se "Tevatron"). Existe uma competição entre os dois. Os físicos dizem que não existe rivalidade, mas observe-se só esta matéria, publicada dois dias antes do anúncio do dia 04/07: http://br.noticias.yahoo.com/eua-anunciam-mais-s%C3%B3lida-evid%C3%AAncia-b%C3%B3son-higgs-195858765.html

O que o LHC fará depois que for encontrado o bóson de Higgs? O LHC não foi construído só para procurar o bóson de Higgs. Os bósons de Higgs são apenas a estrela da vitrine para os cientistas justificarem os US$ 9 bilhões investidos (em 1993, um acelerador ainda maior, o SSC, foi cancelado nos EUA porque os congressistas acharam que o preço não o justificava, e isso deixou os cientistas traumatizados).Vejamos:

Primeiro, o LHC também vem testando as previsões de várias teorias que tentam ir além do Modelo Padrão. E vai continuar testando depois. Por exemplo, entre as teorias testadas pelo LHC, existe toda uma classe de teorias diferentes que prevêem a existência de um grupo inteiro de partículas chamadas supersimétricas (a teoria das cordas é uma delas). O LHC vem procurando essas partículas, mas não as tem encontrado. Isso não significa que não existam, elas podem simplesmente ser pesadas demais para o LHC.

Segundo, o LHC pesquisa o que acontece em colisões com energias nunca exploradas antes, e pode ser que novos fenômenos imprevistos sejam encontrados (ou não). Na verdade, há motivos para se supor que o Modelo Padrão não seja a última palavra. Para se construir uma teoria melhor, é preciso encontrar discrepâncias entre as previsões do modelo e os resultados dos experimentos. Essas discrepâncias guiarão os teóricos na construção da nova teoria. Discrepâncias já foram encontradas, mas são poucas demais para que se possa inferir uma nova teoria a partir delas. O LHC vem procurar mais delas.

Mas, afinal, o que é o LHC? Como funciona? O LHC um acelerador de partículas gerenciado pelo Centro Europeu de Pesquisas (CERN), situado exatamente na fronteira entre França e Suíça, perto de Genebra. Um acelerador de partículas é uma máquina serve para estudar experimentalmente a física das partículas (testar teorias ainda não totalmente confirmadas, investigar fenômenos novos, verificar se há discrepâncias com a teoria atual). Algumas partículas subatômicas existem por aí prontas para serem observadas, como elétrons, prótons, fótons e neutrinos. Mas a maior parte delas não; elas só aparecem fugazmente em reações envolvendo outras partículas (assim como em reações químicas, há substâncias que só aparecem fugazmente em estágios intermediários da reação). O bóson de Higgs é uma dessas partículas fugazes. Os aceleradores aceleram partículas a velocidades muito próximas da da luz e fazem-nas colidir violentamente umas com as outras. Isso provoca reações que produzem novas partículas. Essas partículas costumam "viver" pouco tempo - elas rapidamente decaem em outras partículas - e o que os detectores colocados ao redor do aparelho detectam são, na verdade, essas partículas "secundárias". Assim, o bóson de Higgs não é detectado diretamente, o que é detectado são as partículas originárias do seu decaimento. Para identificar a existência do bóson de Higgs, deve-se detectar as partículas observadas, medir suas massas, suas velocidades, e comparar com o que a teoria prevê. Se os dados forem consistentes com o que se espera do comportamento de um bóson de Higgs, então, opa, devemos ter comprovado que eles existem mesmo, apesar de não os termos visto diretamente.

Os aceleradores de partículas não são o único modo de se pesquisar experimentalmente a física das partículas. O outro é a observação de raios cósmicos. A vantagem destes últimos é que com eles é possível observar partículas disparadamente muito mais energéticas que a dos maiores aceleradores (além disso, é muito mais barato). A desvantagem é que não dá para fazer experimentos controlados. O Brasil tem uma tradição na física de partículas com raios cósmicos, que remonta a Gleb Wataghin e a César Lattes.


Por que é tão difícil encontrar o bóson de Higgs? Porque é uma partícula muito pesada. Para uma partícula ser produzida em uma colisão, essa colisão precisa ter energia suficiente, porque na maioria dos casos práticos a massa dessa partícula virá, em sua maior parte, da energia cinética de colisão (lembrando que a teoria da relatividade especial diz que energia pode ser transformada em matéria e vice-versa). Assim, quanto mais pesada a partícula, mais difícil produzi-la. Foram necessários US$ 9 bilhões para conseguir uma máquina que conseguisse acelerar partículas com energia suficiente para produzir a partícula observada no dia 4 - que é 134 vezes mais pesada que o próton.

Por que o LHC é tão grande? Porque, quanto maior a massa da partícula que se quer produzir, maior tem que ser a energia das colisões. Logo, maior a velocidade das partículas que colidem. A velocidade, no caso do LHC, é tão grande que ainda não existe uma forma de obrigar as partículas a fazerem uma curva suficientemente fechada para sua trajetória caber em uma máquina pequena. Ele tem a forma de um anel. Foi necessário então metê-lo em um túnel subterrâneo circular de 27 quilômetros de comprimento.

O LHC pode acabar com o mundo? Não. Esse mito surgiu porque algumas teorias sugerem a possibilidade dele produzir buracos negros microscópicos. Só que o tempo de vida de tais buracos negros seria de uma fração de segundo e não fariam nada com ninguém (talvez nem mesmo fôssemos capazes de detectá-los). Mas isso foi anunciado sem muito cuidado, o que assustou algumas pessoas e produziu um boato que depois adquiriu vida própria.

O que o bóson de Higgs tem a ver com Deus? Nada. "Partícula de Deus" é apenas um apelido bem-humorado. A tradução em português não é muito boa (no inglês, "God particle" é mais "partícula-deus").

O que são esses "GeV" e "TeV" de que os físicos falam? Trata-se de unidades de energia adequadas para a física das partículas, mas são também usadas para medir massa. Um MeV, ou megaelétron-volt, é um milhão de elétrons-volt, assim como um megabyte é um milhão de bytes. Um GeV, ou gigaelétron-volt, é mil MeV, e um TeV, ou teraelétron-volt, é mil GeV. Para se ter uma ideia do tamanho disso, para se retirar um elétron de um átomo de hidrogênio, são necessários 13,6 eV. Se transformarmos um elétron em energia pura (transformação de matéria em energia), obteremos 0,511 MeV. Se transformarmos a partícula encontrada no dia 04/07 em energia pura, obteremos 126 GeV. Então, diz-se, por abuso de linguagem, que sua massa é de 126 GeV.

Esse nome esquisito, "elétron-volt", foi escolhido porque a sua definição formal é: um elétron-volt é a energia cinética que um elétron adquire quando é acelerado (a partir do repouso) por um potencial de um volt.


Algumas considerações adicionais sobre o Modelo Padrão e o pós-Modelo Padrão:

(1) O Modelo Padrão, teve previsões quantitativas verificadas zilhões de vezes de inúmeras formas, não só pela observação de outras partículas que previu, mas também com cálculos quantitativos sobre as interações entre as partículas subatômicas, que podem ser verificados em experimentos nos aceleradores de partículas e em observações de raios cósmicos (como Lattes fazia). À primeira vista, isso pode levar a concluir que o bóson de Higgs necessariamente exista. Seria penas uma confirmação a mais dentre tantas outras.

(2) Porém, por outro lado, há razões muito fortes para se crer que o Modelo Padrão não deva ser a última palavra. Por isso, é possível que o bóson de Higgs não exista, mesmo tendo em vista os sucessos descritos no item (1). A principal razão para essa desconfiança no Modelo Padrão é que ele é incompatível com a Teoria da Relatividade Geral (de Einstein), cujas previsões também já foram verificadas zilhões de vezes. Ou seja, nem o Modelo Padrão e nem a Relatividade Geral devem ser a última palavra. Seria então necessário encontrar uma teoria maior que fosse consistente com ambas, que as englobasse. Isso, na verdade, é uma das principais fronteiras da física teórica hoje, que ocupa gente como Stephen Hawking - a famosa teoria das cordas é uma candidata a ser essa "teoria maior", mas ela ainda não foi verificada experimentalmente; o LHC vem ajudando também nisso. Qual o ponto de partida para construir tal "teoria maior"? O ponto de partida é procurar discrepâncias entre as previsões do Modelo Padrão e os resultados dos experimentos. Essas discrepâncias serviriam como "guia". Na verdade, tais discrepâncias existem, mas são, por enquanto, poucas demais e pequenas demais para tornar possível inferir qualquer teoria a partir delas. É por isso, aliás, que constróem aceleradores cada vez maiores: para encontrar mais de tais discrepâncias. (Ei, mas o LHC não foi construído para encontrar o Higgs? Sim, também, mas essa é a justificativa-vitrine dos 9 bilhões; ele serve para muitas outras coisas.).



Alguns links:

[P.S. 06/07/12] Este post da Tatiana Nahas no seu blog Ciência na Mídia possui vários links interessantes para quem quiser saber mais: A matéria-prima para a formação do Universo em poucos cliques

Este aqui parece bastante explicativo:
http://fisicamoderna.blog.uol.com.br/arch2012-07-01_2012-07-07.html?utm_medium=twitter&utm_source=twitterfeed#2012_07-04_12_44_10-7000670-0

Texto com alguns detalhes mais aprofundados sobre como foi feita a pesquisa, do blog "Física, Futebol e Falácias", do Luís Gregório:
http://fisicafutebolfalacias.blogspot.de/2012/07/na-espera-do-boson-de-higgs.html

Tutorial do Fermilab (em inglês):
http://www.fnal.gov/pub/presspass/press_releases/2012/files/Higgs_Boson_FAQ_July2012.pdf

sábado, 1 de outubro de 2011

O caso dos neutrinos mais velozes que a luz

A essa altura, a maioria dos leitores já ouviu falar da suposta descoberta de partículas mais velozes que a luz, em um laboratório em Gran Sasso, na Itália, há pouco mais de uma semana. São neutrinos, partículas centenas de milhares de vezes mais leves que um elétron e que interagem muito fracamente com a matéria. A velocidade determinada pela Colaboração OPERA com os enormes detetores da figura ao lado foi de apenas 0,00248% acima da velocidade da luz. No entanto, a precisão do experimento foi grande e esse resultado parece contradizer frontalmente a teoria da relatividade especial.

Vários desdobramentos aconteceram nesta última semana. A maior parte dos cientistas está cética, mas as reações variam muito. A essa altura, muita gente já conhece sua reação por meio de entrevistas e matérias de jornais. Mas outra coisa é ver o que dizem em suas publicações científicas. O blog do ArXiv publicou no sábado uma lista de nove artigos que representam o que a comunidade científica anda pensando de tudo isso. Abaixo, falo um pouco sobre eles, mas este post no blog A Física se Move dá muito mais detalhes.

Basicamente, há três tipos de interpretação para os resultados:

a) A anomalia é devida a algum erro dos autores;
b) A anomalia é real e indica uma violação da teoria da relatividade especial;
c) A anomalia é real, os neutrinos viajam mais rapidamente que a luz, mas a teoria da relatividade não é violada (sim, isso é possível).

Além disso, há os cientistas que preferem esperar que outros grupos verifiquem se conseguem reproduzir os dados - como é o caso dos próprios autores, como declararam no seu artigo.

Por que não crêem os que não crêem - Sendon Glashow, prêmio Nobel de física de 1979, é um dos céticos da categoria (a). "Refutamos a interpretação superluminal dos resultados do OPERA", disparou no resumo do seu artigo, escrito junto com Andrew G. Cohen. Seu argumento é que, pelos seus cálculos, os neutrinos perderiam energia pelo caminho, que seria convertida em matéria por meio da produção de elétrons e pósitrons, e eles não poderiam de forma alguma alcançar o detector do OPERA com velocidade acima da luz, vindos de onde foram produzidos, no CERN, em Genebra, a 730 km de distância.

As tentativas de explicação variam enormemente pela lista do ArXiv. Susan Gardner, da Universidade do Kentucky, nos EUA, acha que o pessoal do OPERA foi ludibriado por efeitos cosmológicos devidos à matéria escura. Carlo Contaldi, do Imperial College de Londres, também acha que eles se enganaram, e o vilão teria sido a interpretação do conceito de simultaneidade adotada - o tempo se comporta de forma bem diferente do que estamos acostumados no cotidiano pode nos pregar peças. Há quem ache que o grupo foi vítima de meras interpretações estatísticas equivocadas, como Robert Alicki, da Universidade de Gdánsk, na Polônia. É que os dados, colhidos durante três anos a fio, são em número imenso e devem sofrer análise estatística, uma tarefa melindrosa e cheia de sutilezas conceituais.

Convivência difícil, mas possível - O problema em supor enganos dessas espécies é que os cientistas do OPERA parecem ter feito um excelente trabalho. No entanto, a teoria da relatividade também vem fazendo um trabalho espetacular - suas previsões vêm sendo confirmada por inúmeros experimenetos já faz quase um século. Assim, há cientistas que apostam que tanto os resultados quanto a relatividade estão corretos. Isso é possível, mas há um preço conceitual nada baixo a se pagar.

Por exemplo, Steven Gubser, da Universidade de Princeton, nos EUA, pretende resolver o paradoxo por meio de dimensões espaciais a mais além das três a que conseguimos perceber. O neutrino teria viajado por dimensões extras, produzindo a ilusão de uma velocidade muito grande. Já Alex Kehagias, da Universidade de Atenas, imagina que a Terra produza um campo de forças ainda desconhecido, além do conhecido campo gravitacional e do seu campo magnético. Surpreendentemente, ele conseguiu escrever a fórmula de um campo que consegue ao mesmo tempo ser compatível com a relatividade e produzir neutrinos mais rápidos que a luz.

Ao fim e ao cabo, a conclusão é a mesma que os próprios autores advertiram desde o primeiro momento: uma conclusão precisa terá que esperar que outros grupos de pesquisa verifiquem se conseguem reproduzir os resultados do OPERA. Isso pode levar uns anos. Enquanto isso, podemos especular à vontade: já há teóricos dando os primeiros passos para construir uma teoria alternativa à relatividade especial. Um dos artigos da lista do blog do ArXiv é justamente sobre isso.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A importância dos pequenos e médios cientistas

O grande Isaac Newton disse uma vez, modestamente, que conseguiu ir tão além de seus predecessores porque apoiava-se sobre “ombros de gigantes”. Mas as coisas mudaram de lá para cá. Hoje, grandes cientistas apóiam-se não só nos ombros dos colossos, mas também sobre altas pirâmides feitas de inúmeros pequenos e médios pesquisadores. Grandes descobertas só são possíveis porque são consequência de uma vasta massa de módicas contribuições. Eis abaixo três exemplos diferentes.


Só sei que 73% nada sei

Eis uma descoberta grande: em 1998, um grupo liderado por Adam Riess descobriu que a expansão do Universo – o inexorável afastamento dos grupos de galáxias uns dos outros, como estilhaços de uma explosão – está se acelerando. Isso foi muito esquisito, porque esperava-se que a gravidade a desacelerasse. Riess baseou-se na observação de supernovas longínquas (supernovas são colossais e raras explosões estelares que adquirem durante alguns dias o brilho equivalente ao de uma galáxia inteira). A consequência imediata foi a descoberta de que 73% da massa de todo o Universo é feito de uma entidade de natureza inteiramente desconhecida que permeia todo oe espaço, chamada, por falta de nome melhor, de “energia escura” (a responsável pela aceleração).

Impressionante, não? Sim, com toda a certeza, tanto que Riess ganhou pelo menos quatro prêmios por causa disso. Acontece que o artigo publicado cita 131 artigos anteriores (contei nesta versão em PDF), cada um delas contendo outras dezenas e assim por diante. O grupo de Riess só pôde alcançar seu grande feito porque na década anterior as técnicas de detecção de supernovas muito distantes haviam sido aprimoradas por uma porção de cientistas ao redor do mundo. Teorias sobre como interpretar os dados foram testadas, abandonadas e aperfeiçoadas em textos herméticos cheios de equações; estudos estatísticos sobre a distribuição de supernovas nas galáxias produziram longos artigos de dezenas de páginas de leitura extraordinariamente chata. E ninguém pensava em revolucionar nada. Sem isso, Riess não teria ganho nenhum desses prêmios.


Davis ajudam Golias no sonho da energia inesgotável

Agora, vejam este interessante contraste. Na Unicamp, um grupo de pesquisa possui uma máquina chamada tokamak, com a qual pretendem contribuir para um grande sonho da humanidade: energia inestogável, limpa e sem perigo de acidentes, usando a fusão nuclear. Um “anti-Fukushima”.

Enquanto isso, em Caldarach, no sul da França, está sendo construída outra máquina semelhante, o Iter, que promete encostar no sonho por volta do fim da década de 2030 ou depois (dinheiro para construir mais delas é outra história). Só que, para o conseguirem, precisaram de uma versão gigantesca, que necessitará de 50 megawatts para funcionar e 15 bilhões de euros para existir. A máquina em Campinas tem apenas 30 centímetros de diâmetro (e não exigiu um centavo, foi doada pela Universidade de Quioto, do Japão).

Pergunta: se foi necessário um projeto faraônico para produzir energia controlável da fusão nuclear, por que os unicampestres acreditam que podem fazer alguma diferença com seu modesto dispositivo?

Resposta: porque, para fazer o Iter, foi usado know-how teórico e experimental produzido por uma miríade de cientistas nos últimos mais de 60 anos, incluindo o pessoal da Unicamp. Até com vantagens: como o tokamak de Campinas é muito menor, pode-se fazer muitos experimentos nele e aumentar o conhecimento numa velocidade que o Iter, um “Elefantástico” que levará decênios para ficar pronto, não permite. O mesmo com todos os muitos pesquisadores ao redor do mundo que colocam sua gotinha no copo que um dia pode transbordar energia limpa.


Rumo ao futuro: esta formiguinha tem lugar garantido

Tudo isso foi dito em retrospecto, sobre coisas que aconteceram ou estão em vias de acontecer. Mas às vezes dá para perceber que uma pequena contribuição certamente estará na sopa de onde um dia virão beber grandes soluções. Escolhendo meio aleatoriamente, caiu-me em mãos recentemente um artigo de 2010 de um físico da UFPR e três do Laboratório Síncrotron de Campinas, sobre cristalização de celulose. Celulose com alto grau de cristalização seve para engenharia de tecidos e produção de materiais biológicos artificiais, coisas com potencial de salvarem vidas. Mas os atuais métodos para aumentar cristalização são agressivos e degradam a celulose. Na busca de uma solução para essa limitação, os cientistas conseguiram mostrar como a cristalização acontece num dos métodos, que usa ultrassom. Até fizeram um desenho em 3D.

Isso não resolve o problema, e dificilmente alguém se lembrará dessa pequena contribuição se no futuro inventarem um novo órgão artificial salvador de vidas. Mas é bem provável que a densa teia de contribuições que leve a essa inovação inclua a dos paranaenses e campineiros.

E assim caminha a pesquisa científica na sua vida “feijão-com-arroz”, base invisível das grandes descobertas que ressoam pelos jornais.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Desenvolvimento e culturas tradicionais

De uns anos para cá, alguma coisa começou a me incomodar nas manifestações culturais para consumo turístico que vemos por aí - procissões, batuques, artesanatos. São muito bonitas, mas muitas me deixam um sutil e acre retrogosto de artificalidade, de "verniz".

Lembrei-me dessa impressão depois que li esse artigo que me caiu em mãos: "A patrimonialização da cultural como forma de desenvolvimento" (em PDF aqui), de Sandra Siqueira Silva, mestranda da Unimontes, que apareceu na última revista Aurora, uma publicação para pós-graduandos editada pela Universidade de Marília. Surpreendeu-me pela forma de expor e articular de modo simples e claro noções em geral difíceis de explicar. Não entendo muito desses assuntos, de modo que talvez seja interessante também para outras pessoas como eu.

Primeiro, ela expõe brevemente alguns conceitos sobre desenvolvimento, até culminar com o de Armartya Sen (prêmio Nobel de Economia), segundo o qual ele não deveria ser definido em termos de prosperidade econômica, mas sim de bem-estar, com ênfase na liberdade. O resto seria consequência. Qual a diferença? É que, além do bem-estar "econômico", existem outros, como o mental e o social – e um não decorre necessariamente do outro.

Como isso se articula com cultura? Esse é o tema da seção 2, em particular a partir do final da página 111. Ali, a autora tece uma crítica a certas estratégias de valorização de patrimônios culturais que enveredam pela espetacularização e pela industrialização dos mesmos. Afinal, há outras formas de riqueza além do poder aquisitivo, e o patrimônio cultural tem outros valores além da possibilidade de produzir dinheiro (e do mero entretenimento, eu acrescentaria). Especialmente importantes são os seus valores simbólicos para a própria comunidade que detém esses patrimônios.

Não só. A cultura é fundamental para o próprio desenvolvimento, no sentido de Amartya Sen. Diz a Sandra:
"A forma de inserção dos excluídos é via cultura e nas alternativas governamentais voltadas para este fim. A cultura é a mola propulsora para que a comunidade local tome posse da sua identidade, se reconheça nela, e através dela se organize socialmente. Com a valorização da cultura torna-se possível o funcionamento de toda a engrenagem social local."

Eis a razão do meu “incômodo de fundo”. Acho que o escopo do artigo é mais amplo, mas várias comunidades que realizam as manifestações para turistas que tenho visto podem, sim, estar ganhando dinheiro (pelo menos, as pessoas em cujos bolsos ele cai), mas parecem ter perdido algo: o significado original dessas manifestações, do seu antigo papel na vida da comunidade. Não se trata apenas de querermos preservar algo bonitinho. O esvaziamento do significado original é sintoma de que aquela comunidade sofreu destruição de seus valores, perda de identidade e mudanças drásticas nas suas atividades normais – enfim, teve sua “engrenagem social local” estourada. Com todo o sofrimento que decorre disso. Isso não combinam com “desenvolvimento”.

As pessoas não deveriam ser forçadas, pelas circunstâncias ou por outras pessoas, a adotar um modelo sócio-econômico e uma cultura diferentes dos que vêm partilhando há séculos.