
Este
vídeo, extremamente bem-feito, que circulou nesses dias pelas redes virtuais, é um exemplo cabal de como números podem ser manipulados para transmitir uma ideia totalmente diferente da realidade. Ele mostra a evolução da economia dos países e da saúde de suas populações desde 1810 até 2009 de um modo admiravelmente didático. Escrevi este post para ajudar os leitores a identificar as armadilhas dos números que há por aí.
Cada bolinha é um país, que vai se deslocando no gráfico à medida que o tempo passa. As em laranja são as nações da Europa, as amarelas das Américas, as vermelhas da Ásia, as azuis da África subsaariana e as verdes do Oriente Médio. Uma síntese de 120 mil números, apresentado no programa "The joy of stats" da BBC pelo médico Hans Rosling, é admiravelmente didático e à primeira vista impressiona pela objetividade.
Vejam a diferença entre os anos de 1810 e de 2009:

Em 1810, os países se acumulavam no canto inferior esquerdo: eram pobres e as pessoas viviam menos.

Em 2009, tenderam para o canto superior direito: enriqueceram e as pessoas passaram a viver mais.
O autor conclui: "Consigo ver uma tendência clara no futuro com assistência, tecnologia verde e paz. É perfeitamente possível que todos possam caminhar para o canto rico e saudável."
E onde está a pegadinha?Há diversos problemas nesse vídeo. Eu poderia, por exemplo, contestar
como ele pôde comparar números sobre países que sequer existiam em 1810 (ex.: os do Oriente Médio estavam sob o domínio do Império Otomano, cujas províncias sequer correspondiam aos territórios que têm hoje; vários países da África ainda nem tinham sido visitados por europeus).
Ou eu poderia questionar por que ele escolheu justamente duas variáveis que, postas juntas, dão esse resultado no gráfico, e não outras que, certamente, dariam resultados diferentes (como desigualdade de renda).
Ou eu poderia argumentar que em grande parte desses países a renda se acumula nas mãos de uns poucos. Ele mostra isso rapidamente no caso da China, mas passa por cima, como se nada significasse.
No entanto, prefiro mostrar que
os próprios dados apresentados são suficientes para desacreditar completamente as conclusões do dr. Rosling, de que o mundo caminha para a paz e de que caminhamos todos para o canto rico e saudável. O caso é que ele fez um artifício para manipulá-los.
Reparem a escala horizontal ("income"). Ele sai de 400, passa por 4.000 e chega em 40.000.
Cada número é o anterior multiplicado por dez. Escalas assim são comuns em estatística, chamam-se "escalas logarítmicas". A escala "normal" (como a vertical, no vídeo) chama-se "linear". Essa é a grande pegadinha. É a manipulação que faz os dados parecerem dizer coisas diferente do que realmente dizem. Senão, vejamos.
Estamos todos caminhando para a riqueza e a saúde?Olhe novamente a figura de 1810. O conjunto das bolinhas parece ocupar quase metade do gráfico na horizontal. No entanto, se a escala fosse linear, ocuparia apenas
um décimo.Em 2009, vários países ficaram para trás. Na verdade, o conjunto das bolinhas ocupa
todo o gráfico. Dá a impressão de que ela dobrou de tamanho. Não dobrou.
Foi multiplicada por 10.
O dr. Rosling conclui que estamos todos caminhando para o canto superior do gráfico. Não estamos. O que aconteceu foi que o conjunto das bolinhas se esticou dez vezes nos últimos 200 anos. E pior: o processo acelerou-se muito nas últimas décadas.
Ah, sim: muito convenientemente, a parte mais pobre está em cores mais escuras, que se confundem com o fundo, e as mais ricas, mais brilhantes. Estarei sendo precipitado se dizer que isso induz à impressão de que as coisas estão realmente se acumulando no canto superior direito?
Estamos caminhando para a paz?Bem, há mais.
As bolinhas avançam muito mais velozmente no final que no começo - pois a escala é logarítmica. Se elas se deslocam meio gráfico no começo, elas avançam de 400 para 4000, ou seja, apenas 3600 "pontos". Na segunda metade, avançam de 4 mil para 40 mil, ou seja, 36 mil!
Conclusão:
o que os dados mostram é que a desigualdade entre os PIBs dos países aumentou explosivamente nas últimas décadas - muito mais aceleradamente do que aumentou durante o século XIX.O dr. Rosling conclui dizendo que o mundo caminha para a paz. Não caminha. Aumentos fortes de desigualdade de renda são a receita para a guerra.
E é para essa direção que continuaremos caminhando, a não ser que os modelos sócio-econômicos vigentes sejam melhorados muito.
Desdobramentos deste post: