Ciência & cultura, ciência & arte, ciência & política, ciência & sociedade, ciência & não-ciência... enfim: ciência & crítica

domingo, 3 de abril de 2011

Como manipular números

Este vídeo, extremamente bem-feito, que circulou nesses dias pelas redes virtuais, é um exemplo cabal de como números podem ser manipulados para transmitir uma ideia totalmente diferente da realidade. Ele mostra a evolução da economia dos países e da saúde de suas populações desde 1810 até 2009 de um modo admiravelmente didático. Escrevi este post para ajudar os leitores a identificar as armadilhas dos números que há por aí.

Cada bolinha é um país, que vai se deslocando no gráfico à medida que o tempo passa. As em laranja são as nações da Europa, as amarelas das Américas, as vermelhas da Ásia, as azuis da África subsaariana e as verdes do Oriente Médio. Uma síntese de 120 mil números, apresentado no programa "The joy of stats" da BBC pelo médico Hans Rosling, é admiravelmente didático e à primeira vista impressiona pela objetividade.

Vejam a diferença entre os anos de 1810 e de 2009:


Em 1810, os países se acumulavam no canto inferior esquerdo: eram pobres e as pessoas viviam menos.


Em 2009, tenderam para o canto superior direito: enriqueceram e as pessoas passaram a viver mais.

O autor conclui: "Consigo ver uma tendência clara no futuro com assistência, tecnologia verde e paz. É perfeitamente possível que todos possam caminhar para o canto rico e saudável."


E onde está a pegadinha?


Há diversos problemas nesse vídeo. Eu poderia, por exemplo, contestar como ele pôde comparar números sobre países que sequer existiam em 1810 (ex.: os do Oriente Médio estavam sob o domínio do Império Otomano, cujas províncias sequer correspondiam aos territórios que têm hoje; vários países da África ainda nem tinham sido visitados por europeus).

Ou eu poderia questionar por que ele escolheu justamente duas variáveis que, postas juntas, dão esse resultado no gráfico, e não outras que, certamente, dariam resultados diferentes (como desigualdade de renda).

Ou eu poderia argumentar que em grande parte desses países a renda se acumula nas mãos de uns poucos. Ele mostra isso rapidamente no caso da China, mas passa por cima, como se nada significasse.

No entanto, prefiro mostrar que os próprios dados apresentados são suficientes para desacreditar completamente as conclusões do dr. Rosling, de que o mundo caminha para a paz e de que caminhamos todos para o canto rico e saudável. O caso é que ele fez um artifício para manipulá-los.

Reparem a escala horizontal ("income"). Ele sai de 400, passa por 4.000 e chega em 40.000. Cada número é o anterior multiplicado por dez. Escalas assim são comuns em estatística, chamam-se "escalas logarítmicas". A escala "normal" (como a vertical, no vídeo) chama-se "linear". Essa é a grande pegadinha. É a manipulação que faz os dados parecerem dizer coisas diferente do que realmente dizem. Senão, vejamos.


Estamos todos caminhando para a riqueza e a saúde?

Olhe novamente a figura de 1810. O conjunto das bolinhas parece ocupar quase metade do gráfico na horizontal. No entanto, se a escala fosse linear, ocuparia apenas um décimo.

Em 2009, vários países ficaram para trás. Na verdade, o conjunto das bolinhas ocupa todo o gráfico. Dá a impressão de que ela dobrou de tamanho. Não dobrou. Foi multiplicada por 10.

O dr. Rosling conclui que estamos todos caminhando para o canto superior do gráfico. Não estamos. O que aconteceu foi que o conjunto das bolinhas se esticou dez vezes nos últimos 200 anos. E pior: o processo acelerou-se muito nas últimas décadas.

Ah, sim: muito convenientemente, a parte mais pobre está em cores mais escuras, que se confundem com o fundo, e as mais ricas, mais brilhantes. Estarei sendo precipitado se dizer que isso induz à impressão de que as coisas estão realmente se acumulando no canto superior direito?


Estamos caminhando para a paz?

Bem, há mais. As bolinhas avançam muito mais velozmente no final que no começo - pois a escala é logarítmica. Se elas se deslocam meio gráfico no começo, elas avançam de 400 para 4000, ou seja, apenas 3600 "pontos". Na segunda metade, avançam de 4 mil para 40 mil, ou seja, 36 mil!

Conclusão: o que os dados mostram é que a desigualdade entre os PIBs dos países aumentou explosivamente nas últimas décadas - muito mais aceleradamente do que aumentou durante o século XIX.

O dr. Rosling conclui dizendo que o mundo caminha para a paz. Não caminha. Aumentos fortes de desigualdade de renda são a receita para a guerra.

E é para essa direção que continuaremos caminhando, a não ser que os modelos sócio-econômicos vigentes sejam melhorados muito.


Desdobramentos deste post:

7 comentários:

  1. Detalhes podem ser obtidos com o próprio Hans Rosling no blogue dele:
    http://roslingsblogger.blogspot.com/
    ---------
    Ou pelo twitter:
    www.twitter.com/HansRosling
    ---------
    Há outras apresentações sobre o tema em:
    http://www.gapminder.org/
    e
    http://www.ted.com/speakers/hans_rosling.html
    ---------
    O Joy of Stats tem 1 hora de duração, o vídeo é um clipe de 4 minutos:
    http://www.gapminder.org/videos/the-joy-of-stats
    ---------

    "como ele pôde comparar números sobre países que sequer existiam em 1810" - não compara os países para os quais não há estatísticas disponíveis. P.e. Aruba só tem valores separados a partir de 1950. Da Palestina (Faixa de Gaza e Cisjordânia) tb. Para países emancipados depois e para os quais, como províncias, colônias ou dependências, haja estatística disponível é esse valor que é apresentado.

    "por que ele escolheu justamente duas variáveis" <=São duas variáveis proxy muito utilizadas sobre condição econômica e social (sanitária). No Gapminder há outras comparações disponíveis (como emissão de CO2).

    "grande parte desses países a renda se acumula nas mãos de uns poucos" <=Sim, mas a correlação se mantém.

    "O dr. Rosling conclui que estamos todos caminhando para o canto superior do gráfico."<=Essa não é bem a conclusão dele. O que ele diz é que ele é capaz de vislumbrar todos se movendo para lá, dadas as condições: paz, tecnologia verde e assistência.

    "O que aconteceu foi que o conjunto das bolinhas se esticou dez vezes nos últimos 200 anos." <=Sim, mas a parte mais pobre ficou menos congestionada. Mesmo considerando-se somente, digamos, países africanos, muitos estão em condições melhores do que em 1800s.

    "Estarei sendo precipitado se dizer que isso induz à impressão de que as coisas estão realmente se acumulando no canto superior direito?"<=sim.

    []s,

    Roberto Takata

    ResponderExcluir
  2. Excelentes informações, xará. Nada como livrarmo-nos dos 140 carateres.

    Comento depois de dar uma olhada.

    ResponderExcluir
  3. O vídeo original, de quase uma hora, não contém informações que possam "redimir" o trecho de 4 minutos. Teço comentários adicionais neste outro post:

    http://cienciaseadjacencias.blogspot.com/2011/04/como-manipular-numeros-2.html

    Lá comento este outro texto do Luís Gregório, que escreveu sobre o mesmo assunto bem melhor do que eu:

    http://fisicafutebolfalacias.blogspot.com/2011/04/joy-of-stats.html

    ResponderExcluir
  4. Mas o crescimento dos paises geralmente é exponencial, talvez por isso a escala logaritmica

    e se o crescimento dos paises for exponencial, acho q a diferenca entre paises com crescimento iguais tende a aumentar exponencialmente, ñ vejo qual o problema com isso

    ResponderExcluir
  5. Essa é uma crítica pertinente e que permite enriquecer a argumentação. O que você está dizendo é que o problema que estou apontando - o aumento exponencial entre a diferença econômica entre os países - é extamente a tendência natural.

    O problema é justamente esse: do modo como as coisas estão evoluindo, estamos à mercê dessa tendência matemática. Isso é péssimo, países se acumulando na região pobre. Seria interessante se houvesse um jeito de interferir e diminuir essa tendência, ajuntar mais os países lá no canto superior direito. Que isso pode ser possível parece mais claro se lembrarmos que há muitos fatores não diretamente econômicos envolvidos: política, guerras, interferência externa nociva, características culturais disfuncionais etc. O que o gráfico indica é que as estratégias para interferir - vindas da ONU, p. ex. - estão fracassando.

    No caso da apresentação do Rosling em si, a o problema é justamente que essas tendências ficam ocultas da visualização no gráfico exponencial, que parece corroborar o futuro "róseo" que Rosling sugere.

    ResponderExcluir
  6. Suponha q a capacidade de crescimento do pais A é de 5% ao ano, e do pais B um pouco mais pobre é de 3% ao ano. Qual a sua sugestão? Fazer o pais A crescer 2% ao ano? Que diferença isso vai fazer para a população do país B?

    E o crescimento de um pais ñ beneficia apenas a sua propria população, mas todos os paises q fazem trocas com ele. Imagina como seria se o Brasil se isolasse do mundo.

    ResponderExcluir
  7. Entre 5% e 3%, a diferença não é tão grande; há diferenças muito maiores hoje e no passado... Algo mais representativo seria 5% contra 0% (a extremidade esquerda do gráfico praticamente não se mexeu). Nesse caso, o que deveria acontecer não é que A crescesse menos, mas que B crescesse mais. Isso faria uma grande diferença para a população de B.

    Imagino que o que esteja te incomdando seja eu aparentemente me "rebelar" contra um "imperativo matemático" - que crescimentos são exponenciais e portanto que países que crescem diferentemente ficam necessariamente com economias cada vez mais distantes.

    Mas não é exatamente isso que me incomoda. O caso é que dentro desse quadro de tendência exponencial há vários cenários possíveis. Um: diferenças de crescimento não tão grandes, tipo 5% contra 3% - produziria em 2009, digamos, as bolinhas do gráfico se espalhando em uma região bem menor, na sua parte direita. Outro: diferenças muito grandes, tipo 5% contra 0%. Aquilo que me incomoda não é a lei matemática em si, mas a situação em princípio desnecessária de as diferenças serem tão grandes a ponto de produzirem tamanho espalhamento das bolinhas.

    ResponderExcluir