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quinta-feira, 19 de maio de 2011

A importância dos pequenos e médios cientistas

O grande Isaac Newton disse uma vez, modestamente, que conseguiu ir tão além de seus predecessores porque apoiava-se sobre “ombros de gigantes”. Mas as coisas mudaram de lá para cá. Hoje, grandes cientistas apóiam-se não só nos ombros dos colossos, mas também sobre altas pirâmides feitas de inúmeros pequenos e médios pesquisadores. Grandes descobertas só são possíveis porque são consequência de uma vasta massa de módicas contribuições. Eis abaixo três exemplos diferentes.


Só sei que 73% nada sei

Eis uma descoberta grande: em 1998, um grupo liderado por Adam Riess descobriu que a expansão do Universo – o inexorável afastamento dos grupos de galáxias uns dos outros, como estilhaços de uma explosão – está se acelerando. Isso foi muito esquisito, porque esperava-se que a gravidade a desacelerasse. Riess baseou-se na observação de supernovas longínquas (supernovas são colossais e raras explosões estelares que adquirem durante alguns dias o brilho equivalente ao de uma galáxia inteira). A consequência imediata foi a descoberta de que 73% da massa de todo o Universo é feito de uma entidade de natureza inteiramente desconhecida que permeia todo oe espaço, chamada, por falta de nome melhor, de “energia escura” (a responsável pela aceleração).

Impressionante, não? Sim, com toda a certeza, tanto que Riess ganhou pelo menos quatro prêmios por causa disso. Acontece que o artigo publicado cita 131 artigos anteriores (contei nesta versão em PDF), cada um delas contendo outras dezenas e assim por diante. O grupo de Riess só pôde alcançar seu grande feito porque na década anterior as técnicas de detecção de supernovas muito distantes haviam sido aprimoradas por uma porção de cientistas ao redor do mundo. Teorias sobre como interpretar os dados foram testadas, abandonadas e aperfeiçoadas em textos herméticos cheios de equações; estudos estatísticos sobre a distribuição de supernovas nas galáxias produziram longos artigos de dezenas de páginas de leitura extraordinariamente chata. E ninguém pensava em revolucionar nada. Sem isso, Riess não teria ganho nenhum desses prêmios.


Davis ajudam Golias no sonho da energia inesgotável

Agora, vejam este interessante contraste. Na Unicamp, um grupo de pesquisa possui uma máquina chamada tokamak, com a qual pretendem contribuir para um grande sonho da humanidade: energia inestogável, limpa e sem perigo de acidentes, usando a fusão nuclear. Um “anti-Fukushima”.

Enquanto isso, em Caldarach, no sul da França, está sendo construída outra máquina semelhante, o Iter, que promete encostar no sonho por volta do fim da década de 2030 ou depois (dinheiro para construir mais delas é outra história). Só que, para o conseguirem, precisaram de uma versão gigantesca, que necessitará de 50 megawatts para funcionar e 15 bilhões de euros para existir. A máquina em Campinas tem apenas 30 centímetros de diâmetro (e não exigiu um centavo, foi doada pela Universidade de Quioto, do Japão).

Pergunta: se foi necessário um projeto faraônico para produzir energia controlável da fusão nuclear, por que os unicampestres acreditam que podem fazer alguma diferença com seu modesto dispositivo?

Resposta: porque, para fazer o Iter, foi usado know-how teórico e experimental produzido por uma miríade de cientistas nos últimos mais de 60 anos, incluindo o pessoal da Unicamp. Até com vantagens: como o tokamak de Campinas é muito menor, pode-se fazer muitos experimentos nele e aumentar o conhecimento numa velocidade que o Iter, um “Elefantástico” que levará decênios para ficar pronto, não permite. O mesmo com todos os muitos pesquisadores ao redor do mundo que colocam sua gotinha no copo que um dia pode transbordar energia limpa.


Rumo ao futuro: esta formiguinha tem lugar garantido

Tudo isso foi dito em retrospecto, sobre coisas que aconteceram ou estão em vias de acontecer. Mas às vezes dá para perceber que uma pequena contribuição certamente estará na sopa de onde um dia virão beber grandes soluções. Escolhendo meio aleatoriamente, caiu-me em mãos recentemente um artigo de 2010 de um físico da UFPR e três do Laboratório Síncrotron de Campinas, sobre cristalização de celulose. Celulose com alto grau de cristalização seve para engenharia de tecidos e produção de materiais biológicos artificiais, coisas com potencial de salvarem vidas. Mas os atuais métodos para aumentar cristalização são agressivos e degradam a celulose. Na busca de uma solução para essa limitação, os cientistas conseguiram mostrar como a cristalização acontece num dos métodos, que usa ultrassom. Até fizeram um desenho em 3D.

Isso não resolve o problema, e dificilmente alguém se lembrará dessa pequena contribuição se no futuro inventarem um novo órgão artificial salvador de vidas. Mas é bem provável que a densa teia de contribuições que leve a essa inovação inclua a dos paranaenses e campineiros.

E assim caminha a pesquisa científica na sua vida “feijão-com-arroz”, base invisível das grandes descobertas que ressoam pelos jornais.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Desenvolvimento e culturas tradicionais

De uns anos para cá, alguma coisa começou a me incomodar nas manifestações culturais para consumo turístico que vemos por aí - procissões, batuques, artesanatos. São muito bonitas, mas muitas me deixam um sutil e acre retrogosto de artificalidade, de "verniz".

Lembrei-me dessa impressão depois que li esse artigo que me caiu em mãos: "A patrimonialização da cultural como forma de desenvolvimento" (em PDF aqui), de Sandra Siqueira Silva, mestranda da Unimontes, que apareceu na última revista Aurora, uma publicação para pós-graduandos editada pela Universidade de Marília. Surpreendeu-me pela forma de expor e articular de modo simples e claro noções em geral difíceis de explicar. Não entendo muito desses assuntos, de modo que talvez seja interessante também para outras pessoas como eu.

Primeiro, ela expõe brevemente alguns conceitos sobre desenvolvimento, até culminar com o de Armartya Sen (prêmio Nobel de Economia), segundo o qual ele não deveria ser definido em termos de prosperidade econômica, mas sim de bem-estar, com ênfase na liberdade. O resto seria consequência. Qual a diferença? É que, além do bem-estar "econômico", existem outros, como o mental e o social – e um não decorre necessariamente do outro.

Como isso se articula com cultura? Esse é o tema da seção 2, em particular a partir do final da página 111. Ali, a autora tece uma crítica a certas estratégias de valorização de patrimônios culturais que enveredam pela espetacularização e pela industrialização dos mesmos. Afinal, há outras formas de riqueza além do poder aquisitivo, e o patrimônio cultural tem outros valores além da possibilidade de produzir dinheiro (e do mero entretenimento, eu acrescentaria). Especialmente importantes são os seus valores simbólicos para a própria comunidade que detém esses patrimônios.

Não só. A cultura é fundamental para o próprio desenvolvimento, no sentido de Amartya Sen. Diz a Sandra:
"A forma de inserção dos excluídos é via cultura e nas alternativas governamentais voltadas para este fim. A cultura é a mola propulsora para que a comunidade local tome posse da sua identidade, se reconheça nela, e através dela se organize socialmente. Com a valorização da cultura torna-se possível o funcionamento de toda a engrenagem social local."

Eis a razão do meu “incômodo de fundo”. Acho que o escopo do artigo é mais amplo, mas várias comunidades que realizam as manifestações para turistas que tenho visto podem, sim, estar ganhando dinheiro (pelo menos, as pessoas em cujos bolsos ele cai), mas parecem ter perdido algo: o significado original dessas manifestações, do seu antigo papel na vida da comunidade. Não se trata apenas de querermos preservar algo bonitinho. O esvaziamento do significado original é sintoma de que aquela comunidade sofreu destruição de seus valores, perda de identidade e mudanças drásticas nas suas atividades normais – enfim, teve sua “engrenagem social local” estourada. Com todo o sofrimento que decorre disso. Isso não combinam com “desenvolvimento”.

As pessoas não deveriam ser forçadas, pelas circunstâncias ou por outras pessoas, a adotar um modelo sócio-econômico e uma cultura diferentes dos que vêm partilhando há séculos.