Ciência & cultura, ciência & arte, ciência & política, ciência & sociedade, ciência & não-ciência... enfim: ciência & crítica

terça-feira, 26 de abril de 2011

Elegância científica: a estética das teorias físicas

Muito entusiasmo existe ao redor da teoria das supercordas, que pretende unificar a mecânica quântica e a relatividade geral, duas teorias em que a física atual está inconciliavelmente cindida. A coisa interessante é que essa teoria unificadora não foi feita a partir de dados experimentais novos, como geralmente acontece. É um construto teórico puro. Então por que seus entusiastas têm tanta convicção de que ela esteja correta? Por que acham que ela sobreviverá quando for possível testá-la com experimentos?

O motivo está no conceito de elegância de teorias físicas. Certas teorias e demonstrações matemáticas contêm um tipo específico de beleza capaz de extasiar um espírito que as saiba contemplar. E modelos científicos que não partilham dos elementos dessa peculiar estética chegam a ser desprezados pelos cientistas (apesar de o argumento último ser sempre a concordância com os resultados de experimentos).

Não é o mesmo tipo de beleza visual que encontramos, digamos, em uma paisagem natural. Mas pode ter algo em comum com a "beleza conceitual" de uma obra de arte abstrata, ou com o prazer intelectual que um expert em pintura ou em música pode sentir ao perceber os artifícios que o autor usou com maestria para chegar àquele resultado.

No entanto, há na elegância na física também uma dimensão prática que permite aos cientistas usarem-na para selecionar suas teorias. O conceito foi popularizado entre os leigos pelo livro de Brian Greene, "O Universo elegante". Vou tentar transmitir ao leitor uma percepção do que seja isso por meio do exemplo da teoria da relatividade especial, feita por Einstein em 1905.


A elegância absoluta da relatividade especial

A teoria da relatividade especial é aquela do E = mc², a equação que exprime a equivalência entre matéria e energia. Note que é uma equação bem compacta. Primeiro, vamos apreciar a disparidade entre a simplicidade dessa equação e a quantidade de conceitos que ela embute.

A equivalência entre massa e energia por si só já é uma consequência surpreendente da relatividade. A equação implica em que energia tem inércia e também peso. E também que matéria pode ser transformada em energia e vice-versa. Tudo isso sintetizado em três letrinhas e um número. Esse tipo de grande poder de síntese é um elemento importante na estética das teorias físicas.

Além disso, com ela pode-se explicar vários fenômenos aparentemente distintos. Com a relatividade, mostrou-se que os princípios físicos que explicam a fonte de energia que mantém as estrelas e o Sol brilhando por bilhões de anos são os mesmos que governam o fenômeno da radioatividade, que são os mesmos que governam os reatores de usinas nucleares.

Há mais. Uma teoria possui algumas premissas, a partir das quais se demonstra o restante. Teorias elegantes possuem premissas simples e ao mesmo tempo profícuas. Teorias "feias" introduzem premissas ex-machina a todo instante para poderem salvar-se (em geral, estas são descartadas). Bem, as premissas da relatividade especial são extraordinariamente simples:
  • As leis da física independem da velocidade do observador
  • A velocidade da luz no vácuo é sempre a mesma para qualquer observador
A primeira parece óbvia; a segunda é bem menos intuitiva. Mas o importante aqui é que é possível extrair todo o conteúdo da relatividade especial daí, tais como a própria equação E = mc² e a relatividade do tempo (observadores diferentes vêem o fluxo do tempo passar diferentemente). No caso das supercordas, uma de suas características mais elegantes é que existência da força da gravidade não precisa ser postulada, ela emerge naturalmente de seu formalismo matemático.

A relatividade especial possui também uma incrível elegância matemática: é possível fazer tudo isso - extrair todas essas consequências daquelas premissas simples - com cálculos curtos com apenas a matemática do ensino médio! Quando eu vi essa demonstração pela primeira vez, tanta coisa emergindo de repente de tão pouco, tive uma de meus mais inesquecíveis momentos de prazer estético-intelectual.

Não que a matemática de uma teoria elegante tenha que ser tão básica: em geral, é bastante sofisticada, mas, se for possível escrevê-la de forma simples e que proporcione demonstrações poderosas e diretas, isso já é mais que suficiente.

Finalmente, a relatividade possuía um enorme poder preditivo. Quando foi formulada, nenhum desses fenômenos - inércia e peso da energia, relatividade do tempo, possibilidade de transformar energia em matéria - nada disso era conhecido. Todos foram previstos. Uma teoria elegante é capaz de prever muitos fenômenos diferentes novos.

No entanto, é importante lembrar que a teoria da relatividade não é considerada correta porque é elegante, mas sim porque suas previsões concordam com as observações feitas em laboratório. Esse é (ou deveria ser) o tira-teima definitivo de uma teoria física.

2 comentários:

  1. Excelente post, Bel! Concordo com tudo, inclusive:

    Teorias "feias" introduzem premissas ex-machina a todo instante para poderem salvar-se (em geral, estas são descartadas).

    Não sou um especialista, mas é o que parece que tem acontecido com a teoria de supercordas. Ela prevê um número absurdo de "vácuos" (essencialmente estados fundamentais degenerados que se traduzem em diferentes "Universos" possíveis). Como então quebrar a simetria e mostrar que esse Universo em que vivemos é o previsto pela teoria?

    Sem problema: invoca-se argumentos ad-hoc como o "princípio antrópico": o nosso Universo é o "correto" por que ele permite que nós estejamos aqui para observá-lo e descrevê-lo. Mais ex-machina, impossível...

    ResponderExcluir
  2. Eu acho que sou ainda menos especialista que você em supercordas, Luis. Mas, a despeito do modo como falei das supercordas acima, a mim incomoda um pouco esse entusiasmo todo todo com elas - não por causa dessa pluralidade de "universos" (que talvez possa ser resolvido com alguma sacada ou aperfeiçoamento técnico), mas simplesmente porque ela nunca foi testada no laboratório.

    Aliás, hoje parece haver, em algumas áreas da física, uma tensão entre a demanda por avanços teóricos e a inexistência - total ou apenas temporária - de dados experimentais que sustentem a teoria. O resultado é um certo relaxamento dos cânones na produção de teorias, como o que vemos nas supercordas.

    Ex. de demandas por avanços teóricos: (1) achar teoria consistente entre relatividade geral e quãntica; (2) achar um modelo do Big-Bang que não contenha a singularidade inicial (densidade de energia e matéria infinitas no momento inicial). Ambos os exemplos produziram teorias tentativas sem base experimental nenhuma. Na primeira, as supercordas, a teoria quântica de laços etc. Na segunda, uma pletora de modelos cosmológicos (várias dezenas) - veja, p. ex., isto aqui: http://arxiv.org/abs/0802.1634v1 . O relaxamento dos cânones nas supercordas é evidente na postura panfletária de seus entusiastas; na cosmologia, tenho visto, em introduções de artigos científicos (ando lendo sobre isso), justificativas por argumentos metafísicos ou de visões de mundo, do tipo "um universo com um início impediria uma compreensão racional do mundo".

    Interessante a diferença de número de modelos alternativos entre os dois casos. O caso da cosmologia é menos complicado, pois nada impede que daqui a poucos anos tenhamos tecnologia suficiente para encontrar estruturas na radiação cósmica de fundo que distingam entre os modelos. O das supercordas é bem ruim, pois uma confirmação experimental cabal satisfatória parece fora de alcance.

    Hm... isto dá outro post!

    ResponderExcluir