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segunda-feira, 16 de maio de 2011

Desenvolvimento e culturas tradicionais

De uns anos para cá, alguma coisa começou a me incomodar nas manifestações culturais para consumo turístico que vemos por aí - procissões, batuques, artesanatos. São muito bonitas, mas muitas me deixam um sutil e acre retrogosto de artificalidade, de "verniz".

Lembrei-me dessa impressão depois que li esse artigo que me caiu em mãos: "A patrimonialização da cultural como forma de desenvolvimento" (em PDF aqui), de Sandra Siqueira Silva, mestranda da Unimontes, que apareceu na última revista Aurora, uma publicação para pós-graduandos editada pela Universidade de Marília. Surpreendeu-me pela forma de expor e articular de modo simples e claro noções em geral difíceis de explicar. Não entendo muito desses assuntos, de modo que talvez seja interessante também para outras pessoas como eu.

Primeiro, ela expõe brevemente alguns conceitos sobre desenvolvimento, até culminar com o de Armartya Sen (prêmio Nobel de Economia), segundo o qual ele não deveria ser definido em termos de prosperidade econômica, mas sim de bem-estar, com ênfase na liberdade. O resto seria consequência. Qual a diferença? É que, além do bem-estar "econômico", existem outros, como o mental e o social – e um não decorre necessariamente do outro.

Como isso se articula com cultura? Esse é o tema da seção 2, em particular a partir do final da página 111. Ali, a autora tece uma crítica a certas estratégias de valorização de patrimônios culturais que enveredam pela espetacularização e pela industrialização dos mesmos. Afinal, há outras formas de riqueza além do poder aquisitivo, e o patrimônio cultural tem outros valores além da possibilidade de produzir dinheiro (e do mero entretenimento, eu acrescentaria). Especialmente importantes são os seus valores simbólicos para a própria comunidade que detém esses patrimônios.

Não só. A cultura é fundamental para o próprio desenvolvimento, no sentido de Amartya Sen. Diz a Sandra:
"A forma de inserção dos excluídos é via cultura e nas alternativas governamentais voltadas para este fim. A cultura é a mola propulsora para que a comunidade local tome posse da sua identidade, se reconheça nela, e através dela se organize socialmente. Com a valorização da cultura torna-se possível o funcionamento de toda a engrenagem social local."

Eis a razão do meu “incômodo de fundo”. Acho que o escopo do artigo é mais amplo, mas várias comunidades que realizam as manifestações para turistas que tenho visto podem, sim, estar ganhando dinheiro (pelo menos, as pessoas em cujos bolsos ele cai), mas parecem ter perdido algo: o significado original dessas manifestações, do seu antigo papel na vida da comunidade. Não se trata apenas de querermos preservar algo bonitinho. O esvaziamento do significado original é sintoma de que aquela comunidade sofreu destruição de seus valores, perda de identidade e mudanças drásticas nas suas atividades normais – enfim, teve sua “engrenagem social local” estourada. Com todo o sofrimento que decorre disso. Isso não combinam com “desenvolvimento”.

As pessoas não deveriam ser forçadas, pelas circunstâncias ou por outras pessoas, a adotar um modelo sócio-econômico e uma cultura diferentes dos que vêm partilhando há séculos.

3 comentários:

  1. Exatamente Roberto! E essas questões são as clássicas nos debates atuais sobre a pós-modernidade, ou o que quer se seja o que estamos vivendo.

    Estamos em um período de transição sócio/econômico/cultural muito forte. Acredito que tão forte como foi a Renascença! E esta tua frase final é o que move o debate, isto é, a imposição de um modelo pré-definido.

    Abraços

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  2. ok Roberto, acho que entendo seu incômodo e compartilho com ele até certo ponto.
    O problema é que essa sua linha de raciocínio pode levar a uma armadilha: a de acharmos que a cultura, pra ser legítima, deve estar cristalizada e parada no tempo. E que, do contrário, é falsa e não deve ser preservada.
    Atualmente qualquer comunidade, por mais isolada que seja, tem acesso a TV, notícias, turistas, etc. Como, então, querer que uma manifestação cultural não sofra influência do modo de vida contemporâneo? Na minha modesta opinião, a cultura é viva e, como tal, se transforma, ganha novos significados. E nem por isso é menos merecedora de ser preservada.

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  3. Exatamente, Ju! Muito bem dito. Nesses assuntos, há o perigo de polarização - de uma posição aculturalista, passa-se para uma radical que acaba matando a cultura tradicional pela ponta oposta. A estratégia então não é evitar a todo custo que as culturas sofram influência do mundo contemporâneo, mas preparar as comunidades o melhor possível para o choque cultural inevitável, para que uma grande quantidade de gente não sofra horrores no processo. Uma coisa é adaptação, outra é destruição.

    E o argumento é que essa preparação passa pela consolidação das culturas tradicionais (o que, seguindo o artigo, requer políticas públicas sobre patrimônio cultural adequadas). Pois, sem essa consolidação, as pessoas perdem seus referenciais no contato maciço com a modernidade, a sua sociedade se desmonta e perdem a capacidade de se adaptar a seu modo.

    Acho perfeitamente possível as sociedades tradicionais conviverem com a modernidade, adaptando-se do seu modo ("adaptando-se do seu modo", e não sendo destruídas e tendo novos modelos impostos de qualquer forma). Uma vez subi numa montanha no litoral do Paraná e havia lá bem no cume uns índios que viviam isolados seminus - haviam migrado do Paraguai e escolheram um local de paisagem fantástica -, mas vendiam pequenos artefatos de madeira para turistas que de vez em quando apareciam, e também compravam nos mercados lá embaixo se precisassem. A impressão que tive não foi de que eles estavam sendo explorados, mas jutamente o oposto - até porque os artefatozinhos eram muuuito rústicos e eles não estavam nem aí para a gente.

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