
Os parágrafos iniciais são dedicados ao magnífico Frankenstein, de Mary Shelley, de 1817, considerada a fundadora do gênero. Já que falei em percepção pública, é muito curioso que nessa obra haja concepções tão maduras sobre a natureza da pesquisa científica e da cabeça dos cientistas. A começar pela dicotomia utilidade x perigos da ciência, que ela aborda de forma equilibrada, bem menos maniqueísta que hoje. Não se surpreenda com isso: depois de tantos filmes e pastiches, sobrou em quem não leu uma visão estereotipada dessa obra, que não corresponde em absoluto ao seu conteúdo. Quando eu li o livro, também tive a impressão de que Shelley conhecia o processo de pesquisa científica de forma mais adequada que a maior parte dos autores modernos. Algo inesperado, dada a tendência da sociedade de sua época de desviar as mulheres dos assuntos da ciência e da tecnologia e de outras "coisas de homens".
Ademais, literiamente o livro é muito bom, com personagens redondos, em cuja mente a autora penetra fundo, e personalidades em conflito que se transformam ao longo da história. A narrativa é uma das que me causaram mais tensão de tudo que já li - não por causa de terror simples, como muitos hoje poderiam imaginar, ou do conflito interno no leitor entre ter pena ou horror do monstro, mas pelo espetáculo das transformações que a relação entre criatura e criador sofre - especialmente na mente da criatura -, até amaldiçoarem-se mutuamente: "Cursed creator!!!", berra agoniado o monstro que nem nome tem ("Frankenstein" é o nome do cientista).
Ouso complementar a lista da Ciência Hoje com outro volume interessante, O melhor da ficção científica do século XIX, com contos de gente graúda como H. G. Wells e a própria Mary Shelley, selecionados por Isaac Asimov. Inclui o antológico "Horla", de Guy de Maupassant. Se alguém identifica ficção científica com literatura de segunda, deveria dar uma olhada no Frankenstein e nessa seleção de contos.
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